Terceira cor de automóvel mais vendida na Itália, o cinza foi abolido do catálogo de cores da Fiat. “O mundo não precisa de mais um carro cinza”, decretou o francês Olivier François, CEO da Fiat, antes de ser mergulhado a bordo de um Fiat 600e na cor Grigio Moda em um tanque com tinta Arancio Sicilia, ou laranja Sicília. A cena foi gravada na praça Giuseppe Garibaldi, na colorida cidade de Lerici, região da Ligúria italiana. O preto, segunda cor de carro mais vendida naquele país, sobrevive – ao menos por enquanto. E o branco, líder na preferência dos italianos, parece ter vida longa na linha Fiat.
Tirar uma cor do catálogo não deve mudar o comportamento de quem compra um carro novo. Os tons neutros tendem a dominar o cenário nos próximos anos, apesar do investimento em pesquisas feito pela indústria de tintas. Alguns fornecedores de tintas automotivas, como a PPG, acreditam que no futuro os tons orgânicos, como o marrom ou o verde, poderão ganhar espaço. Mas nem sempre o que é tendência se materializa.
Desde 2000, um grupo de 40 profissionais, entre especialistas em cores e observadores de tendências de consumo, elege a Cor do Ano. A eleição é promovida pelo Instituto Pantone, organização baseada em Nova Jersey, Estados Unidos. Um dos méritos da instituição foi estabelecer ordenamento na infinita combinação entre as cores do círculo cromático e do grupo acromático.
Se hoje você conhece a composição precisa daquele tom de verde do Fusca 1968, ou se sua mulher aprendeu a pedir pelo nome exato (Deep Berry) a cor do batom preferido de Rihanna, todos devem essas informações ao Instituto Pantone. A Cor do Ano é o resultado do cruzamento de pesquisas sobre o comportamento humano, movimentos sociais, culturais e fenômenos pontuais, como a pandemia, por exemplo. E indica qual cor despertará o ânimo dos consumidores.
O resultado do pleito é acompanhado com real interesse pela indústria da moda e de cosméticos, por decoradores e designers. E com relativo interesse pelos fabricantes de automóveis, um ramo que estacionou nas nuances do prata, do preto e do branco.
É o que vemos nas ruas. Compare as imagens do trânsito de qualquer grande cidade brasileira em diferentes épocas e perceba que nas décadas de 1960 a 1990 a aglomeração motorizada formava um alegre mosaico colorido pelo Amarelo Trigo dos Opala, o Azul Horizonte do Simca Chambord, ou o Vermelho Montana do Karmann-Ghia e o Verde Acqua do Puma, entre outras combinações.
Um Galaxie Branco Nevasca ou um Alfa-Romeo 2300 Preto Etna eram elementos estranhos naquele arco-íris. Um dos maiores sucessos nas rádios no fim dos anos 1960 e que dizia “meu carro é vermelho, não uso espelho pra me pentear”, refletia o estado de espírito da época.
Em 1973, Volkswagen oferecia 14 opções de cores, incluindo três variações de amarelo (batizadas de Caju, Safari e Texas), três de verde (Hippie, Mentol e Místico) e três de azul (Arara, Astral e Niágara). Hoje, são 19 alternativas, das quais 12 são variações de prata, preto e branco. A diferença entre, digamos, o Prata Sirius e o Prata Pirit, está na quantidade de pigmentos e aditivos aplicados na tinta, mas, no fundo, são todos prata.
Desde que o primeiro veículo a combustão de que se tem notícia, o Benz Patent-Motorwagen, começou a circular em 1886 com suas ferragens verdes escuras e seu motor de 0,91 cv pintado de vermelho vivo, a cor passou a fazer parte do automóvel. No início, a escolha das cores era aleatória e o preto dominava, já que era a cor mais acessível e o tempo de secagem em estufas improvisadas era menor.
Hoje, quem pesquisa as cores dos automóveis são os profissionais de uma divisão atrelada ao departamento de design das fábricas, a Color & Trim – ou cor e acabamento em bom português. É uma tribo ousada e colorida, conectada com a moda e que não tem medo de arriscar.
Mas a palavra final sobre quais cores irão para as ruas é dada pelos departamentos de vendas e financeiro – os contadores de feijão, como bem definiu Lee Iacocca, o cara que inventou o Mustang (cujas cores de lançamento, a propósito, incluíam o Rosa Crepúsculo) e que tirou a Chrysler do pântano nos anos 1980. Tais contabilistas se guiam não pela tendência, mas pelos números no fim da planilha. Não tenha dúvida: o Financeiro da Fiat italiana entrou em alerta depois que a marca decretou o fim do cinza.
Apertada com os custos e com as baixas vendas, a indústria automotiva investe no seguro. A inclusão de uma nova cor na linha de produção exige de um a dois anos de desenvolvimento e testes para checagem, entre outros requisitos, se a pintura resiste às variações do clima (e aqui falamos de Sol escaldante ao meio-dia e geada na madrugada) ou à poeira. E isso custa dinheiro. Há, ainda, um outro tipo de teste igualmente caro – o de mercado.
A cor exclusiva é apresentada em clínicas de consumidores, aquelas reuniões fechadas com potenciais compradores para que o fabricante meça a reação do público e promova eventuais correções de rota no carro a ser lançado. “Todo mundo se encanta com aquele tom de verde, mas quando a gente pergunta se alguém compraria um carro daquela cor, a resposta é sempre não”, conta nossa anônima personagem.
Chevrolet Agile não encantou, mas chamou atenção por causa da carroceria — Foto: Divulgação
Constatei igual reação quando em 2009 dirigi um recém-lançado Chevrolet Agile Amarelo Carman, um meio-termo entre o amarelo pálido e o verde. Todos olhavam para o carro com simpatia e, como simpatia atrai simpatia, eu procurava retribuir os acenos.
Foi quando o motorista de um hatch preto parou ao meu lado no sinal vermelho e me parabenizou: “Até que enfim vejo um pouco de cor no deserto.” Concordei e emendei. “Você teria um carro dessa cor?” Antes de arrancar, o rapaz justificou sua negativa: “É difícil revender, só por isso eu não teria.” A ironia é que no mercado de carros com mais de 30 anos, as cores exóticas, como o Vermelho Colorado do Gol GTI, são as mais valorizadas.
O Amarelo Carman do Agile foi uma ousadia calculada. Os fabricantes recorriam às cores vivas ou aos tons pouco usuais nos lançamentos para que fossem destacados nas capas de revista, nos comerciais de TV, exposições ou nos showroons das lojas. Deu-se o mesmo com o VW CrossFox Amarelo Solaris, o Fiat Mobi Roxo Mirtilo, ou o Ford EcoSport Amarelo Vibrante, para citar alguns.
E nisso, as fábricas apenas repetiam a iniciativa tomada em 1966 pelo designer italiano Nuccio Bertone, que apresentou o Lamborghini Miura pintado de Laranja Sol (depois rebatizado de Laranja Miura) na praça do Cassino, em Mônaco, às vésperas da largada do GP: difícil dizer o que teria chamado mais a atenção – o carro, a cor ou ambos. Mas enquanto Bertone investia nas cores chamativas, como o Verde Escândalo, para o esportivo, por aqui as cores de lançamento se desbotavam depois de alguns meses, sufocadas pela “trindade que todos nós conhecemos”.
Se nos resta um consolo, o fenômeno prata/preto/branco não é exclusividade brasileira: o mundo sobre quatro rodas está menos colorido, como apontam os fabricantes de tintas automotivas.
No começo deste ano, a BASF anunciou que em 2022 o branco predominou na frota mundial (39% dos carros lançados no ano passado eram dessa cor), seguido pelo preto (18%), cinza (16%) e prata (8%), ao passo que tons de azul (8%), vermelho (5%), verde, marrom e dourado (estas últimas com 1%) caíram na preferência. O relatório foi baseado em dados de vendas de veículos de passeio, mas apontou uma tendência verificada nos Estados Unidos – a cor violeta surgindo timidamente no radar. Seja como for, o quadro é parecido com o dos últimos 20 anos, quando se começou a notar a preferência do comprador por tons neutros.
E não há perspectiva de que isso se altere nos próximos anos – a menos que a tecnologia que faz a carroceria mudar de cor ao premir de um botão esteja disponível. A solução aplicada a automóveis foi apresentada no ano passado pela BMW no SUV iX Flow. Quem usa os tablets para leitura de livros conhece o sistema E-ink, ou cor eletrônica, mas a tecnologia nunca tinha sido aplicada em superfícies tão grandes e complexas como a de um automóvel.
Funciona por impulsos eletromagnéticos aplicados a microcápsulas instaladas na lataria: com a espessura de um fio de cabelo (algo em torno de 100 micrômetros, a milésima parte de 1 milímetro), as cápsulas armazenam pigmentos brancos com carga negativa e pretos, com carga positiva. Estimulados por ondas elétricas, os pigmentos se acumulam na superfície das microcápsulas e formam o tom de cor desejado.
“É uma área fascinante”, conta uma amiga que trabalha no C&T de um fabricante e que prefere não se identificar. Ela diz que é estimulada a acompanhar desfiles de moda, frequentar galerias de arte, observar as vitrines das lojas e ficar atenta aos movimentos vanguardistas e, com todas essas informações processadas, sugerir uma paleta de cores para cada modelo.
“Mas acaba sendo frustrante porque no fim o que predomina é a trindade que todos nós conhecemos”. A trindade, você conhece, é o prata-preto-branco. Resta a essa tribo de abnegados tentar emplacar um detalhe colorido no acabamento interno – um friso azul claro no painel, uma costura com linha amarela no revestimento do volante, um vermelho na fita do cinto de segurança, por exemplo.